segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Maternidade.


Uma noite indormida. Ele a olhava cada segundo, atento ao respirar sereno, a seu lado. Haviam chegado hoje, ela ali acomodada plácida e bonita, naquele cesto. Ele, atônito, num misto de prazer e angustia, tentando entender a magia da vida. A mãe, bela também, se acomodara junto, missão cumprida. Começavam juntos um caminhar em grupo, uma família constituída. O parto fora tranqüilo como outros tantos.
A maternidade de volta, agora é ela que segue seu rumo. Espera um filho a menina crescida. Aqueles olhinhos pretos brilham como sempre. Um contentamento rasgado comunica aos seus o fato novo. Um recomeço, como outros tantos. O futuro presente, afinal.
Passearam muito, brincaram juntos, estudaram tudo. Ensinaram-se sempre. Relembra a mãe, presente sempre, mesmo morta. A vida passa, sem pressa qualquer, ele hoje maduro percebe-se um ator secundário. Um seguir adiante, necessário, marcado, a imponderabilidade do viver. De surpresas mágicas, sabe-se eterno, neste novo nascer.
Ele num misto de alegria e torpor, certo da sua finitude. Como todos os que o precederam. Uma obsolescência sentida. Agora, ele está atento mais que nunca. Sabe-se feliz, quer vê-la sempre, um lamento tolo o acompanha, a desatenção presente quando se é esteio. Nada de culpas, um olhar apenas pelo que passou. Acompanha, lívido, o crescer da filha. Sente o prêmio da lição tomada.
Viu-a crescer, escolher seu rumo. Levou-a ao altar, com um orgulho escancarado. Bailou com ela, graduou-se junto. Mãos dadas, vez ou outra caminham lado a lado. Fazem sempre coisas tolas, próprias da vida, de que a têm leve, de sabor marcado. Um amor gratuito, um entender recíproco, uma ligação perene. Tal filha e pai, como convém.
Ele a acompanha, mesmo longe. Segue seus passos, um caminhar decidido de quem se sabe capaz. Tempos outros estiveram juntos, em papéis distintos. Um ou outro intervalo aqui e ali, a separação doída, o reconstruir tudo, o sofrer legado.
Ele sabe-se renovado. Entende, afinal, o estar aqui.

domingo, 31 de maio de 2009

Paraíso.

Tinham trabalhado arduamente naquele dia. Amanhecera chovendo, um chuvisco continuado, daqueles que esfriam os ossos. Em meio ao barro, orientavam a colocação das peças, uma sobre as outras, tarefa que exigia força e pertinácia. Também puseram a mão na massa, em um esforço comum para completar o serviço, não o queriam postergado. Tinham que cumprir o cronograma, afinal, eram perfeccionistas e teimosos os dois.
O lugar pertencia ao mais velho, ele o havia comprado há pouco tempo, para ali desenvolver uma atividade rural. Em meio a um sítio paradisíaco, na encosta de uma montanha, um horizonte deslumbrante pela frente. Distava um tanto da cidadezinha mais próxima, nada tão perto nem tão longe. Chegava-se por um caminho rural que serpenteava as montanhas sinuosas, em meio a regatos e remansos, terras próprias para um refúgio escondido e tranqüilo, longe das agruras da metrópole de tantas caras desconhecidas onde viviam e que viram inchada e estragada por tolos em busca de progresso.
Terminada a tarefa, voltaram ao vilarejo para a dormida, retomar a jornada no dia seguinte. Havia ainda muito que fazer, o projeto mal começara, era necessário transformar o lugar, deteriorado pelo abandono há algum tempo. Acomodados no hotel depois de um jantar divertido e descontraído, entre comes e bebes de muito sabor, reviram os planos comuns. Veio o inesperado. Um mal estar súbito se instalara, havia que socorrer o mais vivido. Atônitos procuraram por socorro, uma busca frenética se seguiu por algum hospital das redondezas. Constatado o enfarto, restava torcer pelo pronto atendimento. A remoção para a cidade grande foi necessária, restou ao outro se ocupar dos afazeres comuns, em meio a uma angustiante falta de notícias, vindas não muito tempo depois. Nada havia a fazer, medicado ele se recuperava de umas tantas safenas, em um sabático esperar.
O episódio estreitou a amizade, tornou-a perene, aparou arestas, juntou peças. E a vida seguiu. Tornaram-se como pai e filho, a diferença de idade permeava o convívio, talvez se fizeram irmãos. Viam-se amiúde e aos poucos, como a vida encaminha, tomaram seus rumos, os encontros se espaçaram, a empatia ficou. Encontram-se de quando em quando, lembranças comuns retornam claras e saborosas, as conversas fluem num recontar gostoso, um mútuo aprendizado, essas coisas todas que ajudam o amadurecer.
O tempo costurou o futuro. Não mais atuavam juntos. A época do construir havia se dissipado, uma ou outra lembrança aqui e ali, o projeto prosperara. Muitas noites haviam passado debruçados no objetivo traçado. Estavam agora na memória apenas, umas já esfumaçadas pelo tempo, este senhor absoluto e inapelável. Outras nem tanto. As dormidas em um casebre singelo, em meio à natureza soberana, em um lugar afastado de tudo onde já vivera, junto a gentes simples e corteses, o fizeram compreender a simplicidade das coisas todas. Um galo inesquecível, desses de estranho fuso horário, que cantava em meio à madrugada, ainda encanta sua alma.
Souberam mais tarde que o lugar já não é o mesmo. Foi vendido certa ocasião, em meio a uma novo problema de saúde. Onde se criavam carneiros e patos, hoje perambulam mulheres e homens nus, que se despem na busca de um outro viver, um refúgio como outros tantos que inventamos de quando em quando. Divertem-se os dois ao saber que talvez tenham feito, como uns deuses pagãos, um paraíso qualquer.


sábado, 30 de maio de 2009

Pugilato.

Às vezes caminhavam juntos na praia, em manhãs radiosas, iluminadas pelo sol de outono, apenas um ou outro grupo de pescadores voltando do mar. O lugar era deslumbrante. Fora da temporada, livre das hordas de turistas que alavancam os ilhéus e garantem o ano, deixando também pilhas de lixo próprias de incultos. Sobravam uns poucos moradores, o vazio do lugar garantia a paz, ouviam-se apenas marulhos e o gorjear de gaivotas nos vôos rasantes em busca de comida.
Eram amigos de adolescência, a vida os afastara, tomaram seus rumos e, ao acaso se reencontraram na cidade grande que os educara. Um deles imigrara com os pais em tempos remotos, fugidos das agruras do pós-guerra, na busca por novos rumos em outras paragens. Dividiam despesas comuns, conviviam um exílio voluntário na ilha, a paz buscada depois de sucessos e fracassos nos negócios e na vida. Maduros, lembravam embevecidos de tempos outros, divertiam-se, filosofavam devaneios vários, faziam-se quase irmãos.
Conheceram-se a caminho do colégio, ainda meninos, o nativo a mostrar ao outro os jeitos e trejeitos dos da nova terra. Brincaram muito, fizeram as artes todas de adolescentes, construíram uma amizade sólida, dessas perenes que se fazem quando quase crianças, assim, sem frescuras outras, naquela cumplicidade gratuita dos que são muito jovens. Tomaram seus rumos em um momento qualquer que o amadurecer exige.
O reencontro foi simples e mágico. Estavam os dois de novo solteiros, depois de sucessos e tropeços todos, desses bem comuns no decorrer da vida. Retomaram o caminhar, cinquentões, dividiam contas, bebericavam juntos, jogavam conversa fora, filosofavam muito. Coisas de adolescentes-envelhescentes, este estágio da vida em que nos achamos resolvidos, mente aberta, idéias claras, alguma sabedoria. Um sabático ano, uma espera pelo acontecer.
E veio o caos. A conversa começara amena, um preparando o jantar, o outro um ou outro drink. E as agruras todas afloraram. Dessas de divã, um acumular de mágoas vida afora e, perceberam-se distantes, viram afinal que a vida os moldara diferentes, a pureza da juventude se esvaíra. Resolveram as diferenças no tapa, como meninos que ainda são. Um pugilato divertido, desses que os analistas abominam. Saíram quase curados, a amizade um tanto estremecida.
Seguem seus rumos, tocam a vida. Cada um em seu lugar. Sabem sim que a amizade é perene. Sabem também dos perigos de viver no mesmo teto.



domingo, 3 de maio de 2009

Reencontro.

Ele atravessou a avenida e entrou no ônibus. Fez sinal ao outro que apertou o passo para acompanhá-lo. Faziam uma viagem juntos, talvez a primeira em anos. Reviam o Rio de Janeiro, um convívio antigo, tempo em que iam vez ou outra para uma temporada em família, nas férias escolares. Não tinham muito tempo, a escala era de apenas um dia. A escolha fora rápida, assim sem muito pensar, nenhuma discussão, vamos lá e pronto. Passaram uma manhã radiosa naquele parque esplêndido, de tempos imperiais, o verde vibrante, a mata conservada, em meio às palmeiras, as alamedas floridas, regatos e lagos bem cuidados. Um bom sinal. Um bom começo, esse no Jardim Botânico. Perceberam que havia uns trinta anos que não entravam ali.
Rezaram juntos no Mosteiro de São Bento, ali no Largo da Carioca. Uma ida à Colombo, o almoço no restaurante de outrora. Caminharam em lugares que ainda restam elegantes no Rio, esse Rio de maus tratos burros, de gerência fraca em tantos desgovernos inúteis e que ainda reina lindo. E de soberana beleza.
Reembarcaram à noitinha. Viajar em um navio é uma experiência interessante e hedonista. A imensidão do mar nos recoloca na devida dimensão. A soberba eventual desaparece. Afloram prazeres, um suceder de sabores, aportar em lugares mágicos, o descompromisso se instala. Assim leves, reviram experiências, trocaram valores, apararam arestas. Dessas de origem, um tanto profundas, quem sabe, construídas na tarefa do educar, estabelecer limites, ensinar vivências, do aprender. Tão comuns e constates no trato do dia a dia. Leves, falaram tudo. Lembraram ocasiões, já sem qualquer rigidez ou mágoa. Riram tudo. Jogaram, beberam, brincaram. Andaram sem pressa por Búzios, um caminhar dolente pela Rua das Pedras, num dia radioso de quase ninguém, que acontece sempre fora das temporadas, livres de horda de turistas, nessa pequena vila de fuso horário tão diverso.
Navegaram por lugares já de há muito conhecidos, de outros tempos, de épocas em que eram apenas pai e filho, lembraram muito da mulher e mãe, já morta. Da Ubatuba ainda quase deserta, da época da adolescência, de matas e águas muito preservadas, de muita paz. Viram ao longe a Ilha Bela, um lugar mágico.
Ficaram uns tantos dias, um giro curto em família. Os irmãos não se entusiasmaram. Uma ocasião rara. Dividiram tudo, conversas, humores, sabores. Partilharam vivências. Descobriram suas essências comuns. Não eram mais apenas pai e filho. Sentiram-se parecidos. Eram amigos, afinal.

Volta por cima.

Ele não entendeu nada. Ela enlouquecera ou o quê? Bem que ele correu, tentou se defender, explicar tudinho. Fora um mal entendido, esse diz-que-disse todo, coisa de louco, uma fofoca danada, esse pessoal não tem mais o que inventar. Ele, Peleponeso, era muito distinto, solícito, atento à freguesia, ciente de seus afazeres, desempenhava com maestria. Atendera ao chamado apenas, era só um conserto simples, no chuveiro da outra. Não havia rolado nada, ele jurou de pé junto.
O tropeção veio em má hora. Acordou com uma poça de sangue junto às partes. Quando a Polícia chegou, junto com o socorro, já não havia o que fazer. Ela saboreava com prazer a bola esquerda, fizera um refogado caprichado mesmo, boa quituteira que é, sempre foi. A cervejinha ao lado.
Mas não se abateu. Recuperado, tocou a vida. O episódio deu uma incrementada nos negócios, a propaganda, o aparecer no jornal, essas coisas todas. Achou genial o cartão de visitas, mandou fazer uns tantos com um brilho daqueles. Adotou o apelido, os tempos seriam outros afinal. Nada mais de biscates, viver de expediente. Agora, conhecido no pedaço, era muito importante. Lascou no texto, orgulhoso, ao lado do número do celular, o tal de “Caolho”, a seu dispor. Pensou também em escrever no verso o outro epíteto. “Meia-foda”. Achou que era demais.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Outono

O dia de um luminoso outono mal tinha clareado, os primeiros raios do sol refletiam tímidos naquela imensidão azul, não havia viva alma por ali àquela hora, a areia lhe era exclusiva, como sempre. Caminhava já há algum tempo, dormira pouco naquela noite, acordara em paz. A tranqüilidade da ilha sempre o inspirou, um abrigo aconchegante mesmo, de tempos em tempos ali era o refúgio. O vôo das gaivotas faziam-no sentir livre como nunca. Seus primeiros passos, em remota época, esses os dera na areia, em algum outro lugar e o levaram a se identificar de forma perene com o oceano.
Sentia-se liberto, enfim. Não mais o entusiasmavam as gentes, tolas quase todas, fúteis e inúteis a maioria. Dera um basta nisso tudo, fizera as malas, partira de vez, na bagagem apenas poucas peças, uns tantos livros que lhe eram caros, uma ou outra música. Não disse onde ia, quando voltaria, não dera pista alguma. Apenas partira.
Sabia dos amores todos que levava consigo, incrustados para sempre na sua alma. Sabia também que em algum lugar elas o teriam, assim sem mais, sem remorsos, sem rancores. Apenas alguma cicatriz consolidada em uns alguéns longínquos, no tempo e no espaço. Saborosas lembranças de tudo e todas, uns tantos momentos mágicos do viver. Sabe que sempre as amou, desde a primeira, elas também o amaram, o viver junto nem sempre difícil desgastou tudo, é assim mesmo, nada a fazer ou culpar. Apenas acaba, a morte e o nascer a se repetir todo o tempo, a razão da vida.
Encontrara ali finalmente a paz interna, o bem estar consigo. Talvez achem-no um tanto amalucado, faz questão de falar em outra língua com os que encontra, não mais vê razão alguma em novas descobertas, há que correr contra o tempo, cada vez mais inexorável. Os interesses todos estavam apenas em sua cabeça, todo o necessário aprendera nos convívios, conservaria apenas lembranças. Satisfazia-se muito naquelas paragens, vez ou outra encomendava livros com nome falso, a remessa em uma caixa postal. Os pensares outros o instigavam sempre, e tal como o jogo-do-bicho, aprendera que vale o escrito.
Passara de vez a se alimentar com a palavra escrita, a sensação solene de que o vento não as leva. Não se sente só, pelo contrário. Caminham consigo escritos de tantos outros, personagens múltiplos, não há mais tempo para tanto saber, uma busca inglória, já muito antes deveria ter começado. Finalmente é livre, sente-se no seu céu, ali pode sempre ouvir o silêncio, de tantas buscas. Sabe que não vai mais voltar.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Aurora

Amanhecera, enfim. Lembrou-se que o domingo começara morno, costumeiro, como tantos. Sentira a falta das meninas, abrigadas na casa da avó. Um dia a dois, já há algum tempo não tinham a oportunidade, a vida os transformara – o trabalho, as tarefas, o tempo. Talvez a amizade permanecesse. Estranhos não eram. Conheceram-se quase meninos, ainda adolescentes. Época de poucas culpas, de muito entusiasmo.
Ele não desconfiara. O passeio no parque, mãos dadas, o almoço no restaurante, muita conversa, alguns sorrisos, nenhuma discussão. As malas prontas. A conversa final. A surpresa escancarada à sua frente. Não discutiu. Apenas obedeceu.
A noite indormida, naquele hotel desconhecido. O quarto estranho, insôsso, uma luminosidade esquisita a lhe ferir a alma. Hoje sabe que não foi a luz, nem a escuridão. Foi o passado. A história comum. A cumplicidade ficara em algum lugar do caminho. Ele apenas não se dera conta.
Um banho demorado, lavou junto mágoas e alegrias. Respirou fundo, pagou a conta e se foi. Para a vida. Para os novos amores. Mágicos, efêmeros, tórridos. Frutos do acaso, como todos. Acordara, enfim.



terça-feira, 9 de setembro de 2008

Insânia

“Nessun Dorma”
Não tem certeza de nada, nem ao menos sabe o que está fazendo ali, o que é aquilo. Deitado, olha fixamente o teto de vigas escuras, um ambiente imaculadamente branco, aos poucos retoma a consciência, algum lapso ainda tem. Procura em redor um objeto conhecido, uma referência que lhe avive a memória. Talvez já esteja há uns dois, três dias, não sabe ao certo. Uma enorme bebedeira, parece. Como tantas. Ou uma apagada qualquer. Como chegou, tem uma vaga noção de onde está, há algo familiar no ambiente. Ninguém por perto, nem um ruído estranho, sòmente a música de fundo, não percebe de onde vem.
Ele a vê de quando em quando, talvez seja a enfermeira. As vestes brancas, cabelos loiros, pele muito alva. Seios firmes, sorriso inebriante, decidida, bonita, capaz. Ainda meio transparente, uma imagem meio etérea, não consegue identificar com nitidez. Tenta se concentrar, formar um juízo qualquer. Lembranças vêm à mente, um turbilhão de imagens, uma seqüência desconexa. Sente uma paz perturbadora, inquietante. E a música, qual é mesmo? Fixa-se no rosto da mulher, tenta se concentrar. Em vão.
Quer sair, tenta se mexer, quem sabe possa reconhecer algo que o torne lúcido outra vez. O corpo não lhe obedece, nada se mexe a não ser seus olhos. E a cabeça, que não pára de pensar. Tenta se aquietar, talvez o efeito de alguma droga. A luminosidade estranha a lhe machucar, não consegue nem mesmo fechar os olhos. Agora tem apenas a imagem dela, ainda desfocada, embaralhada, difusa.
Reconhece afinal a música, cada vez mais intensa. Tem a sensação de conseguir encadear o pensamento, lembra-se de um ou outro beijo, o sabor marcado dos seus lábios, as línguas entrelaçadas, tem na memória a lembrança de dias luminosos de um outono qualquer. Do amor fugaz, inesperado, surpreendente. De intensidade única. Lembra-se do seu cheiro, um dos sentidos talvez ainda funcione. Há apenas um sufocante odor de fármacos no ar. Tenta recuperar a história toda, saber quem eram, onde estiveram, quando começou.
Aos poucos a consciência se esvai. Como tem acontecido há tempos. Desde que a conheceu, sente-se inútil, refém desse amor desvairado. Entre um e outro delírio, uma sensação estranha da doença a lhe tomar o corpo, a febre intensa a preceder sua inconsciência. Talvez esteja morto. Talvez não.


sábado, 1 de março de 2008

Fotografia

“Para que me tenhas”
Acordara bem disposto, a manhã era luminosa. Um giro solitário para rever o passado, a reflexão sobre fatos recentes. A rápida agonia do pai, meses antes, o deixara perplexo. Precisou redescobrir os que o cercavam, entendê-los nas suas entranhas, refletir sobre disputas passadas, ciúmes, falares, tudo isso.
O acaso o levara ali. Um antigo convento, em meio a uma paisagem deslumbrante, a música sacra presente. As oliveiras tomando o horizonte, permeado de sobreiros, o pôr-do-sol, uma escandalosa profusão de matizes, tinham-no deixado em paz, a mente se aquietara. Uma paz procurada, a primeira em anos. O rancor acumulado havia se dissipado por completo. Compreendia erros e acertos.
Uma arquitetura histórica, seiscentista. Antigas celas reformadas guardavam o ambiente secular, sinal de respeito, redesenhadas com bom gosto. A capela interna o levara aos tempos de aluno de jesuítas, ainda adolescente. Sentia-se recluso. E liberto. Dos lugares onde estivera, este era o de uma paz imensa. Em um Portugal de antepassados, por ele pouco visto. Andara meio sem rumo, nenhum roteiro fixo. Aportara ali. Pensara brevemente em rever parentes, amigos do pai morto, sem qualquer entusiasmo. Homenagem justa, tal um andar junto de outros tempos, reviver fatos, avivar a relação outrora conturbada. Sentia-o presente.
Circulou despudorado pela região, descobriu cantos e encantos, misto de prazer e pensar. Provou sabores quase divinos, escutou atento o dizer das gentes do lugar, embevecido com a especial franqueza, remetiam-no a avó. Estava só. Compreendia o sentido do viver, já tinha andado por outros lugares, levara suas saudades todas, seus amores junto. O jogo de armar, a espiada nas suas partes, o ver suas entranhas.
Foi em Évora, em frente ao templo de Diana. Chegou despercebida, não a reparou. Fotografava como um turista qualquer. Memórias para viajar outra vez, lembrar sensações, uma certeza cartesiana de ter estado ali. Como fazem todos. A conversa fluiu. Um falar gostoso da menina estudante, a curiosidade juvenil de muitos encantos. De repente, a pergunta insólita. Tiras uma foto minha? Um porque de espanto, não mais a veria. Uma resposta sábia: “Para que me tenhas”. Fotografara a si.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Revelação

Acordou como de costume na mesma hora. Sentia-se nesse dia um pouco estranho, mais ainda que o habitual. Nada muito preocupante, longe disso, sua mediocridade já não o incomodava. A rotina de anos não o levava a questionar mais coisa alguma, percebera-se insosso desde sempre, há tempos a mulher o abandonara assim sem mais, os amigos se foram, nem o cachorro agüentara, fugira num passeio qualquer. Nem no banho cantarolava como antes.
A vida, essa seguia morna. O conjugado tinha todos os sinais de sua existência, aquela bagunça organizada de quem se sabe só, as mesmas coisas na geladeira, as fotos amareladas ali jogadas, o cuco na parede ali inerte, inútil. O pequeno altar no canto da sala, alguma poeira a escurecer os santos de devoção de outrora, a toalhinha de renda esgarçada pelo tempo. Já não o incomodava também a janela, a vista para lugar nenhum.
Mas, nesse dia sentia-se diferente. Na condução viu-se prestando atenção nos outros, nos de sempre, como nunca antes. A morena à sua frente, de cabelos escorridos, lábios grossos, parecia mais bonita. O boy a seu lado, o cobrador, aquela senhora grisalha, os estudantes, todos pareciam mais nítidos, a vida entrava no foco. Mesmo que não o percebessem nunca.
No escritório, a indiferença perene. Nem a Gerusa, de exuberante beleza, de atenção carinhosa de tempos outros o notava mais. Ele que tanto sonhara em tê-la nos braços, aquelas carnes firmes entrelaçadas em seu corpo amorfo, o tesão antigo ainda não desvanecido, restava-lhe apenas a satisfação solitária, a imagem dos seios firmes dela a lhe povoar a cabeça. Das outras colegas, nem as feias lhe davam qualquer alento.
Veio a revelação. Não notaram sua presença no banheiro. Eles entraram aos risos cúmplices, naqueles instantes mágicos que precedem o amor. Viu claramente o puto do chefe penetrá-la por trás com sofreguidão, ainda quase vestidos. Não sem antes ela ter feito um boquete esplêndido, desses de deixar nas nuvens um cristão. Tudo muito lúdico, bem no meio da tarde. Viu-os sair, as caras de escancarada satisfação. Atônito, olhou-se no espelho. Não havia imagem alguma. Apenas o reflexo da sua total insipidez.

Eterno

No começo, naqueles vinte e tantos dias, foi muito divertido. Poder observar tudo e todos daquela maneira, assim despercebido, uma curiosa experiência. Ele se deslocava numa velocidade incrível, aproveitou e reviu umas gentes já há quase sumidas na memória, meio ao acaso. Quando se deu conta, aproveitou. Deliciou-se no papel de voyeur, espiou a vida de amigos e desafetos, observou sua própria rotina. Aquela vizinha interessante, de corpo escultural, jeito de santa, essa era voraz, deitava-se com todos. Nunca imaginara. Descobriu umas quantas manias dos que o cercavam, desnudou família e amigos. Sentia-se bem, muito agradado de se ver ali embaixo, ao lado de uns e outros, muitos outros, observar o seu próprio corpo e o dia-a-dia. Não pensara que aquela aula faria falta. Esotérico nunca fora, matriculara-se no curso por um perene ceticismo, nunca acreditara muito em nada disso, ainda mais em sair do corpo. Não conseguiu voltar.