domingo, 7 de dezembro de 2008

Outono

O dia de um luminoso outono mal tinha clareado, os primeiros raios do sol refletiam tímidos naquela imensidão azul, não havia viva alma por ali àquela hora, a areia lhe era exclusiva, como sempre. Caminhava já há algum tempo, dormira pouco naquela noite, acordara em paz. A tranqüilidade da ilha sempre o inspirou, um abrigo aconchegante mesmo, de tempos em tempos ali era o refúgio. O vôo das gaivotas faziam-no sentir livre como nunca. Seus primeiros passos, em remota época, esses os dera na areia, em algum outro lugar e o levaram a se identificar de forma perene com o oceano.
Sentia-se liberto, enfim. Não mais o entusiasmavam as gentes, tolas quase todas, fúteis e inúteis a maioria. Dera um basta nisso tudo, fizera as malas, partira de vez, na bagagem apenas poucas peças, uns tantos livros que lhe eram caros, uma ou outra música. Não disse onde ia, quando voltaria, não dera pista alguma. Apenas partira.
Sabia dos amores todos que levava consigo, incrustados para sempre na sua alma. Sabia também que em algum lugar elas o teriam, assim sem mais, sem remorsos, sem rancores. Apenas alguma cicatriz consolidada em uns alguéns longínquos, no tempo e no espaço. Saborosas lembranças de tudo e todas, uns tantos momentos mágicos do viver. Sabe que sempre as amou, desde a primeira, elas também o amaram, o viver junto nem sempre difícil desgastou tudo, é assim mesmo, nada a fazer ou culpar. Apenas acaba, a morte e o nascer a se repetir todo o tempo, a razão da vida.
Encontrara ali finalmente a paz interna, o bem estar consigo. Talvez achem-no um tanto amalucado, faz questão de falar em outra língua com os que encontra, não mais vê razão alguma em novas descobertas, há que correr contra o tempo, cada vez mais inexorável. Os interesses todos estavam apenas em sua cabeça, todo o necessário aprendera nos convívios, conservaria apenas lembranças. Satisfazia-se muito naquelas paragens, vez ou outra encomendava livros com nome falso, a remessa em uma caixa postal. Os pensares outros o instigavam sempre, e tal como o jogo-do-bicho, aprendera que vale o escrito.
Passara de vez a se alimentar com a palavra escrita, a sensação solene de que o vento não as leva. Não se sente só, pelo contrário. Caminham consigo escritos de tantos outros, personagens múltiplos, não há mais tempo para tanto saber, uma busca inglória, já muito antes deveria ter começado. Finalmente é livre, sente-se no seu céu, ali pode sempre ouvir o silêncio, de tantas buscas. Sabe que não vai mais voltar.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Aurora

Amanhecera, enfim. Lembrou-se que o domingo começara morno, costumeiro, como tantos. Sentira a falta das meninas, abrigadas na casa da avó. Um dia a dois, já há algum tempo não tinham a oportunidade, a vida os transformara – o trabalho, as tarefas, o tempo. Talvez a amizade permanecesse. Estranhos não eram. Conheceram-se quase meninos, ainda adolescentes. Época de poucas culpas, de muito entusiasmo.
Ele não desconfiara. O passeio no parque, mãos dadas, o almoço no restaurante, muita conversa, alguns sorrisos, nenhuma discussão. As malas prontas. A conversa final. A surpresa escancarada à sua frente. Não discutiu. Apenas obedeceu.
A noite indormida, naquele hotel desconhecido. O quarto estranho, insôsso, uma luminosidade esquisita a lhe ferir a alma. Hoje sabe que não foi a luz, nem a escuridão. Foi o passado. A história comum. A cumplicidade ficara em algum lugar do caminho. Ele apenas não se dera conta.
Um banho demorado, lavou junto mágoas e alegrias. Respirou fundo, pagou a conta e se foi. Para a vida. Para os novos amores. Mágicos, efêmeros, tórridos. Frutos do acaso, como todos. Acordara, enfim.



terça-feira, 9 de setembro de 2008

Insânia

“Nessun Dorma”
Não tem certeza de nada, nem ao menos sabe o que está fazendo ali, o que é aquilo. Deitado, olha fixamente o teto de vigas escuras, um ambiente imaculadamente branco, aos poucos retoma a consciência, algum lapso ainda tem. Procura em redor um objeto conhecido, uma referência que lhe avive a memória. Talvez já esteja há uns dois, três dias, não sabe ao certo. Uma enorme bebedeira, parece. Como tantas. Ou uma apagada qualquer. Como chegou, tem uma vaga noção de onde está, há algo familiar no ambiente. Ninguém por perto, nem um ruído estranho, sòmente a música de fundo, não percebe de onde vem.
Ele a vê de quando em quando, talvez seja a enfermeira. As vestes brancas, cabelos loiros, pele muito alva. Seios firmes, sorriso inebriante, decidida, bonita, capaz. Ainda meio transparente, uma imagem meio etérea, não consegue identificar com nitidez. Tenta se concentrar, formar um juízo qualquer. Lembranças vêm à mente, um turbilhão de imagens, uma seqüência desconexa. Sente uma paz perturbadora, inquietante. E a música, qual é mesmo? Fixa-se no rosto da mulher, tenta se concentrar. Em vão.
Quer sair, tenta se mexer, quem sabe possa reconhecer algo que o torne lúcido outra vez. O corpo não lhe obedece, nada se mexe a não ser seus olhos. E a cabeça, que não pára de pensar. Tenta se aquietar, talvez o efeito de alguma droga. A luminosidade estranha a lhe machucar, não consegue nem mesmo fechar os olhos. Agora tem apenas a imagem dela, ainda desfocada, embaralhada, difusa.
Reconhece afinal a música, cada vez mais intensa. Tem a sensação de conseguir encadear o pensamento, lembra-se de um ou outro beijo, o sabor marcado dos seus lábios, as línguas entrelaçadas, tem na memória a lembrança de dias luminosos de um outono qualquer. Do amor fugaz, inesperado, surpreendente. De intensidade única. Lembra-se do seu cheiro, um dos sentidos talvez ainda funcione. Há apenas um sufocante odor de fármacos no ar. Tenta recuperar a história toda, saber quem eram, onde estiveram, quando começou.
Aos poucos a consciência se esvai. Como tem acontecido há tempos. Desde que a conheceu, sente-se inútil, refém desse amor desvairado. Entre um e outro delírio, uma sensação estranha da doença a lhe tomar o corpo, a febre intensa a preceder sua inconsciência. Talvez esteja morto. Talvez não.


sábado, 1 de março de 2008

Fotografia

“Para que me tenhas”
Acordara bem disposto, a manhã era luminosa. Um giro solitário para rever o passado, a reflexão sobre fatos recentes. A rápida agonia do pai, meses antes, o deixara perplexo. Precisou redescobrir os que o cercavam, entendê-los nas suas entranhas, refletir sobre disputas passadas, ciúmes, falares, tudo isso.
O acaso o levara ali. Um antigo convento, em meio a uma paisagem deslumbrante, a música sacra presente. As oliveiras tomando o horizonte, permeado de sobreiros, o pôr-do-sol, uma escandalosa profusão de matizes, tinham-no deixado em paz, a mente se aquietara. Uma paz procurada, a primeira em anos. O rancor acumulado havia se dissipado por completo. Compreendia erros e acertos.
Uma arquitetura histórica, seiscentista. Antigas celas reformadas guardavam o ambiente secular, sinal de respeito, redesenhadas com bom gosto. A capela interna o levara aos tempos de aluno de jesuítas, ainda adolescente. Sentia-se recluso. E liberto. Dos lugares onde estivera, este era o de uma paz imensa. Em um Portugal de antepassados, por ele pouco visto. Andara meio sem rumo, nenhum roteiro fixo. Aportara ali. Pensara brevemente em rever parentes, amigos do pai morto, sem qualquer entusiasmo. Homenagem justa, tal um andar junto de outros tempos, reviver fatos, avivar a relação outrora conturbada. Sentia-o presente.
Circulou despudorado pela região, descobriu cantos e encantos, misto de prazer e pensar. Provou sabores quase divinos, escutou atento o dizer das gentes do lugar, embevecido com a especial franqueza, remetiam-no a avó. Estava só. Compreendia o sentido do viver, já tinha andado por outros lugares, levara suas saudades todas, seus amores junto. O jogo de armar, a espiada nas suas partes, o ver suas entranhas.
Foi em Évora, em frente ao templo de Diana. Chegou despercebida, não a reparou. Fotografava como um turista qualquer. Memórias para viajar outra vez, lembrar sensações, uma certeza cartesiana de ter estado ali. Como fazem todos. A conversa fluiu. Um falar gostoso da menina estudante, a curiosidade juvenil de muitos encantos. De repente, a pergunta insólita. Tiras uma foto minha? Um porque de espanto, não mais a veria. Uma resposta sábia: “Para que me tenhas”. Fotografara a si.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Revelação

Acordou como de costume na mesma hora. Sentia-se nesse dia um pouco estranho, mais ainda que o habitual. Nada muito preocupante, longe disso, sua mediocridade já não o incomodava. A rotina de anos não o levava a questionar mais coisa alguma, percebera-se insosso desde sempre, há tempos a mulher o abandonara assim sem mais, os amigos se foram, nem o cachorro agüentara, fugira num passeio qualquer. Nem no banho cantarolava como antes.
A vida, essa seguia morna. O conjugado tinha todos os sinais de sua existência, aquela bagunça organizada de quem se sabe só, as mesmas coisas na geladeira, as fotos amareladas ali jogadas, o cuco na parede ali inerte, inútil. O pequeno altar no canto da sala, alguma poeira a escurecer os santos de devoção de outrora, a toalhinha de renda esgarçada pelo tempo. Já não o incomodava também a janela, a vista para lugar nenhum.
Mas, nesse dia sentia-se diferente. Na condução viu-se prestando atenção nos outros, nos de sempre, como nunca antes. A morena à sua frente, de cabelos escorridos, lábios grossos, parecia mais bonita. O boy a seu lado, o cobrador, aquela senhora grisalha, os estudantes, todos pareciam mais nítidos, a vida entrava no foco. Mesmo que não o percebessem nunca.
No escritório, a indiferença perene. Nem a Gerusa, de exuberante beleza, de atenção carinhosa de tempos outros o notava mais. Ele que tanto sonhara em tê-la nos braços, aquelas carnes firmes entrelaçadas em seu corpo amorfo, o tesão antigo ainda não desvanecido, restava-lhe apenas a satisfação solitária, a imagem dos seios firmes dela a lhe povoar a cabeça. Das outras colegas, nem as feias lhe davam qualquer alento.
Veio a revelação. Não notaram sua presença no banheiro. Eles entraram aos risos cúmplices, naqueles instantes mágicos que precedem o amor. Viu claramente o puto do chefe penetrá-la por trás com sofreguidão, ainda quase vestidos. Não sem antes ela ter feito um boquete esplêndido, desses de deixar nas nuvens um cristão. Tudo muito lúdico, bem no meio da tarde. Viu-os sair, as caras de escancarada satisfação. Atônito, olhou-se no espelho. Não havia imagem alguma. Apenas o reflexo da sua total insipidez.

Eterno

No começo, naqueles vinte e tantos dias, foi muito divertido. Poder observar tudo e todos daquela maneira, assim despercebido, uma curiosa experiência. Ele se deslocava numa velocidade incrível, aproveitou e reviu umas gentes já há quase sumidas na memória, meio ao acaso. Quando se deu conta, aproveitou. Deliciou-se no papel de voyeur, espiou a vida de amigos e desafetos, observou sua própria rotina. Aquela vizinha interessante, de corpo escultural, jeito de santa, essa era voraz, deitava-se com todos. Nunca imaginara. Descobriu umas quantas manias dos que o cercavam, desnudou família e amigos. Sentia-se bem, muito agradado de se ver ali embaixo, ao lado de uns e outros, muitos outros, observar o seu próprio corpo e o dia-a-dia. Não pensara que aquela aula faria falta. Esotérico nunca fora, matriculara-se no curso por um perene ceticismo, nunca acreditara muito em nada disso, ainda mais em sair do corpo. Não conseguiu voltar.