terça-feira, 9 de setembro de 2008

Insânia

“Nessun Dorma”
Não tem certeza de nada, nem ao menos sabe o que está fazendo ali, o que é aquilo. Deitado, olha fixamente o teto de vigas escuras, um ambiente imaculadamente branco, aos poucos retoma a consciência, algum lapso ainda tem. Procura em redor um objeto conhecido, uma referência que lhe avive a memória. Talvez já esteja há uns dois, três dias, não sabe ao certo. Uma enorme bebedeira, parece. Como tantas. Ou uma apagada qualquer. Como chegou, tem uma vaga noção de onde está, há algo familiar no ambiente. Ninguém por perto, nem um ruído estranho, sòmente a música de fundo, não percebe de onde vem.
Ele a vê de quando em quando, talvez seja a enfermeira. As vestes brancas, cabelos loiros, pele muito alva. Seios firmes, sorriso inebriante, decidida, bonita, capaz. Ainda meio transparente, uma imagem meio etérea, não consegue identificar com nitidez. Tenta se concentrar, formar um juízo qualquer. Lembranças vêm à mente, um turbilhão de imagens, uma seqüência desconexa. Sente uma paz perturbadora, inquietante. E a música, qual é mesmo? Fixa-se no rosto da mulher, tenta se concentrar. Em vão.
Quer sair, tenta se mexer, quem sabe possa reconhecer algo que o torne lúcido outra vez. O corpo não lhe obedece, nada se mexe a não ser seus olhos. E a cabeça, que não pára de pensar. Tenta se aquietar, talvez o efeito de alguma droga. A luminosidade estranha a lhe machucar, não consegue nem mesmo fechar os olhos. Agora tem apenas a imagem dela, ainda desfocada, embaralhada, difusa.
Reconhece afinal a música, cada vez mais intensa. Tem a sensação de conseguir encadear o pensamento, lembra-se de um ou outro beijo, o sabor marcado dos seus lábios, as línguas entrelaçadas, tem na memória a lembrança de dias luminosos de um outono qualquer. Do amor fugaz, inesperado, surpreendente. De intensidade única. Lembra-se do seu cheiro, um dos sentidos talvez ainda funcione. Há apenas um sufocante odor de fármacos no ar. Tenta recuperar a história toda, saber quem eram, onde estiveram, quando começou.
Aos poucos a consciência se esvai. Como tem acontecido há tempos. Desde que a conheceu, sente-se inútil, refém desse amor desvairado. Entre um e outro delírio, uma sensação estranha da doença a lhe tomar o corpo, a febre intensa a preceder sua inconsciência. Talvez esteja morto. Talvez não.