segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Revelação

Acordou como de costume na mesma hora. Sentia-se nesse dia um pouco estranho, mais ainda que o habitual. Nada muito preocupante, longe disso, sua mediocridade já não o incomodava. A rotina de anos não o levava a questionar mais coisa alguma, percebera-se insosso desde sempre, há tempos a mulher o abandonara assim sem mais, os amigos se foram, nem o cachorro agüentara, fugira num passeio qualquer. Nem no banho cantarolava como antes.
A vida, essa seguia morna. O conjugado tinha todos os sinais de sua existência, aquela bagunça organizada de quem se sabe só, as mesmas coisas na geladeira, as fotos amareladas ali jogadas, o cuco na parede ali inerte, inútil. O pequeno altar no canto da sala, alguma poeira a escurecer os santos de devoção de outrora, a toalhinha de renda esgarçada pelo tempo. Já não o incomodava também a janela, a vista para lugar nenhum.
Mas, nesse dia sentia-se diferente. Na condução viu-se prestando atenção nos outros, nos de sempre, como nunca antes. A morena à sua frente, de cabelos escorridos, lábios grossos, parecia mais bonita. O boy a seu lado, o cobrador, aquela senhora grisalha, os estudantes, todos pareciam mais nítidos, a vida entrava no foco. Mesmo que não o percebessem nunca.
No escritório, a indiferença perene. Nem a Gerusa, de exuberante beleza, de atenção carinhosa de tempos outros o notava mais. Ele que tanto sonhara em tê-la nos braços, aquelas carnes firmes entrelaçadas em seu corpo amorfo, o tesão antigo ainda não desvanecido, restava-lhe apenas a satisfação solitária, a imagem dos seios firmes dela a lhe povoar a cabeça. Das outras colegas, nem as feias lhe davam qualquer alento.
Veio a revelação. Não notaram sua presença no banheiro. Eles entraram aos risos cúmplices, naqueles instantes mágicos que precedem o amor. Viu claramente o puto do chefe penetrá-la por trás com sofreguidão, ainda quase vestidos. Não sem antes ela ter feito um boquete esplêndido, desses de deixar nas nuvens um cristão. Tudo muito lúdico, bem no meio da tarde. Viu-os sair, as caras de escancarada satisfação. Atônito, olhou-se no espelho. Não havia imagem alguma. Apenas o reflexo da sua total insipidez.

Eterno

No começo, naqueles vinte e tantos dias, foi muito divertido. Poder observar tudo e todos daquela maneira, assim despercebido, uma curiosa experiência. Ele se deslocava numa velocidade incrível, aproveitou e reviu umas gentes já há quase sumidas na memória, meio ao acaso. Quando se deu conta, aproveitou. Deliciou-se no papel de voyeur, espiou a vida de amigos e desafetos, observou sua própria rotina. Aquela vizinha interessante, de corpo escultural, jeito de santa, essa era voraz, deitava-se com todos. Nunca imaginara. Descobriu umas quantas manias dos que o cercavam, desnudou família e amigos. Sentia-se bem, muito agradado de se ver ali embaixo, ao lado de uns e outros, muitos outros, observar o seu próprio corpo e o dia-a-dia. Não pensara que aquela aula faria falta. Esotérico nunca fora, matriculara-se no curso por um perene ceticismo, nunca acreditara muito em nada disso, ainda mais em sair do corpo. Não conseguiu voltar.