domingo, 31 de maio de 2009

Paraíso.

Tinham trabalhado arduamente naquele dia. Amanhecera chovendo, um chuvisco continuado, daqueles que esfriam os ossos. Em meio ao barro, orientavam a colocação das peças, uma sobre as outras, tarefa que exigia força e pertinácia. Também puseram a mão na massa, em um esforço comum para completar o serviço, não o queriam postergado. Tinham que cumprir o cronograma, afinal, eram perfeccionistas e teimosos os dois.
O lugar pertencia ao mais velho, ele o havia comprado há pouco tempo, para ali desenvolver uma atividade rural. Em meio a um sítio paradisíaco, na encosta de uma montanha, um horizonte deslumbrante pela frente. Distava um tanto da cidadezinha mais próxima, nada tão perto nem tão longe. Chegava-se por um caminho rural que serpenteava as montanhas sinuosas, em meio a regatos e remansos, terras próprias para um refúgio escondido e tranqüilo, longe das agruras da metrópole de tantas caras desconhecidas onde viviam e que viram inchada e estragada por tolos em busca de progresso.
Terminada a tarefa, voltaram ao vilarejo para a dormida, retomar a jornada no dia seguinte. Havia ainda muito que fazer, o projeto mal começara, era necessário transformar o lugar, deteriorado pelo abandono há algum tempo. Acomodados no hotel depois de um jantar divertido e descontraído, entre comes e bebes de muito sabor, reviram os planos comuns. Veio o inesperado. Um mal estar súbito se instalara, havia que socorrer o mais vivido. Atônitos procuraram por socorro, uma busca frenética se seguiu por algum hospital das redondezas. Constatado o enfarto, restava torcer pelo pronto atendimento. A remoção para a cidade grande foi necessária, restou ao outro se ocupar dos afazeres comuns, em meio a uma angustiante falta de notícias, vindas não muito tempo depois. Nada havia a fazer, medicado ele se recuperava de umas tantas safenas, em um sabático esperar.
O episódio estreitou a amizade, tornou-a perene, aparou arestas, juntou peças. E a vida seguiu. Tornaram-se como pai e filho, a diferença de idade permeava o convívio, talvez se fizeram irmãos. Viam-se amiúde e aos poucos, como a vida encaminha, tomaram seus rumos, os encontros se espaçaram, a empatia ficou. Encontram-se de quando em quando, lembranças comuns retornam claras e saborosas, as conversas fluem num recontar gostoso, um mútuo aprendizado, essas coisas todas que ajudam o amadurecer.
O tempo costurou o futuro. Não mais atuavam juntos. A época do construir havia se dissipado, uma ou outra lembrança aqui e ali, o projeto prosperara. Muitas noites haviam passado debruçados no objetivo traçado. Estavam agora na memória apenas, umas já esfumaçadas pelo tempo, este senhor absoluto e inapelável. Outras nem tanto. As dormidas em um casebre singelo, em meio à natureza soberana, em um lugar afastado de tudo onde já vivera, junto a gentes simples e corteses, o fizeram compreender a simplicidade das coisas todas. Um galo inesquecível, desses de estranho fuso horário, que cantava em meio à madrugada, ainda encanta sua alma.
Souberam mais tarde que o lugar já não é o mesmo. Foi vendido certa ocasião, em meio a uma novo problema de saúde. Onde se criavam carneiros e patos, hoje perambulam mulheres e homens nus, que se despem na busca de um outro viver, um refúgio como outros tantos que inventamos de quando em quando. Divertem-se os dois ao saber que talvez tenham feito, como uns deuses pagãos, um paraíso qualquer.


sábado, 30 de maio de 2009

Pugilato.

Às vezes caminhavam juntos na praia, em manhãs radiosas, iluminadas pelo sol de outono, apenas um ou outro grupo de pescadores voltando do mar. O lugar era deslumbrante. Fora da temporada, livre das hordas de turistas que alavancam os ilhéus e garantem o ano, deixando também pilhas de lixo próprias de incultos. Sobravam uns poucos moradores, o vazio do lugar garantia a paz, ouviam-se apenas marulhos e o gorjear de gaivotas nos vôos rasantes em busca de comida.
Eram amigos de adolescência, a vida os afastara, tomaram seus rumos e, ao acaso se reencontraram na cidade grande que os educara. Um deles imigrara com os pais em tempos remotos, fugidos das agruras do pós-guerra, na busca por novos rumos em outras paragens. Dividiam despesas comuns, conviviam um exílio voluntário na ilha, a paz buscada depois de sucessos e fracassos nos negócios e na vida. Maduros, lembravam embevecidos de tempos outros, divertiam-se, filosofavam devaneios vários, faziam-se quase irmãos.
Conheceram-se a caminho do colégio, ainda meninos, o nativo a mostrar ao outro os jeitos e trejeitos dos da nova terra. Brincaram muito, fizeram as artes todas de adolescentes, construíram uma amizade sólida, dessas perenes que se fazem quando quase crianças, assim, sem frescuras outras, naquela cumplicidade gratuita dos que são muito jovens. Tomaram seus rumos em um momento qualquer que o amadurecer exige.
O reencontro foi simples e mágico. Estavam os dois de novo solteiros, depois de sucessos e tropeços todos, desses bem comuns no decorrer da vida. Retomaram o caminhar, cinquentões, dividiam contas, bebericavam juntos, jogavam conversa fora, filosofavam muito. Coisas de adolescentes-envelhescentes, este estágio da vida em que nos achamos resolvidos, mente aberta, idéias claras, alguma sabedoria. Um sabático ano, uma espera pelo acontecer.
E veio o caos. A conversa começara amena, um preparando o jantar, o outro um ou outro drink. E as agruras todas afloraram. Dessas de divã, um acumular de mágoas vida afora e, perceberam-se distantes, viram afinal que a vida os moldara diferentes, a pureza da juventude se esvaíra. Resolveram as diferenças no tapa, como meninos que ainda são. Um pugilato divertido, desses que os analistas abominam. Saíram quase curados, a amizade um tanto estremecida.
Seguem seus rumos, tocam a vida. Cada um em seu lugar. Sabem sim que a amizade é perene. Sabem também dos perigos de viver no mesmo teto.



domingo, 3 de maio de 2009

Reencontro.

Ele atravessou a avenida e entrou no ônibus. Fez sinal ao outro que apertou o passo para acompanhá-lo. Faziam uma viagem juntos, talvez a primeira em anos. Reviam o Rio de Janeiro, um convívio antigo, tempo em que iam vez ou outra para uma temporada em família, nas férias escolares. Não tinham muito tempo, a escala era de apenas um dia. A escolha fora rápida, assim sem muito pensar, nenhuma discussão, vamos lá e pronto. Passaram uma manhã radiosa naquele parque esplêndido, de tempos imperiais, o verde vibrante, a mata conservada, em meio às palmeiras, as alamedas floridas, regatos e lagos bem cuidados. Um bom sinal. Um bom começo, esse no Jardim Botânico. Perceberam que havia uns trinta anos que não entravam ali.
Rezaram juntos no Mosteiro de São Bento, ali no Largo da Carioca. Uma ida à Colombo, o almoço no restaurante de outrora. Caminharam em lugares que ainda restam elegantes no Rio, esse Rio de maus tratos burros, de gerência fraca em tantos desgovernos inúteis e que ainda reina lindo. E de soberana beleza.
Reembarcaram à noitinha. Viajar em um navio é uma experiência interessante e hedonista. A imensidão do mar nos recoloca na devida dimensão. A soberba eventual desaparece. Afloram prazeres, um suceder de sabores, aportar em lugares mágicos, o descompromisso se instala. Assim leves, reviram experiências, trocaram valores, apararam arestas. Dessas de origem, um tanto profundas, quem sabe, construídas na tarefa do educar, estabelecer limites, ensinar vivências, do aprender. Tão comuns e constates no trato do dia a dia. Leves, falaram tudo. Lembraram ocasiões, já sem qualquer rigidez ou mágoa. Riram tudo. Jogaram, beberam, brincaram. Andaram sem pressa por Búzios, um caminhar dolente pela Rua das Pedras, num dia radioso de quase ninguém, que acontece sempre fora das temporadas, livres de horda de turistas, nessa pequena vila de fuso horário tão diverso.
Navegaram por lugares já de há muito conhecidos, de outros tempos, de épocas em que eram apenas pai e filho, lembraram muito da mulher e mãe, já morta. Da Ubatuba ainda quase deserta, da época da adolescência, de matas e águas muito preservadas, de muita paz. Viram ao longe a Ilha Bela, um lugar mágico.
Ficaram uns tantos dias, um giro curto em família. Os irmãos não se entusiasmaram. Uma ocasião rara. Dividiram tudo, conversas, humores, sabores. Partilharam vivências. Descobriram suas essências comuns. Não eram mais apenas pai e filho. Sentiram-se parecidos. Eram amigos, afinal.

Volta por cima.

Ele não entendeu nada. Ela enlouquecera ou o quê? Bem que ele correu, tentou se defender, explicar tudinho. Fora um mal entendido, esse diz-que-disse todo, coisa de louco, uma fofoca danada, esse pessoal não tem mais o que inventar. Ele, Peleponeso, era muito distinto, solícito, atento à freguesia, ciente de seus afazeres, desempenhava com maestria. Atendera ao chamado apenas, era só um conserto simples, no chuveiro da outra. Não havia rolado nada, ele jurou de pé junto.
O tropeção veio em má hora. Acordou com uma poça de sangue junto às partes. Quando a Polícia chegou, junto com o socorro, já não havia o que fazer. Ela saboreava com prazer a bola esquerda, fizera um refogado caprichado mesmo, boa quituteira que é, sempre foi. A cervejinha ao lado.
Mas não se abateu. Recuperado, tocou a vida. O episódio deu uma incrementada nos negócios, a propaganda, o aparecer no jornal, essas coisas todas. Achou genial o cartão de visitas, mandou fazer uns tantos com um brilho daqueles. Adotou o apelido, os tempos seriam outros afinal. Nada mais de biscates, viver de expediente. Agora, conhecido no pedaço, era muito importante. Lascou no texto, orgulhoso, ao lado do número do celular, o tal de “Caolho”, a seu dispor. Pensou também em escrever no verso o outro epíteto. “Meia-foda”. Achou que era demais.